Villas&Golfe Angola
· Cofundadora da Muxima Bio · · T. Redação · F. Nuno Almendra

Myriam Taylor

«Não se nasce mulher, aprende-se a ser»

PMMEDIA Pub.
Certas pessoas aparecem-nos como faróis de esperança. A postura é de quem conhece a força interior, e os olhos são de quem se alia à sabedoria para quebrar barreiras e erguer pontes. Myriam Taylor é tudo isso, uma mulher capaz de desafiar tempo e convenções, de olhar sempre atento sobre o mundo e crítico sobre si. Ela também chora, também ri. Também constrói, também desfaz. Mas se há algo que nunca se permitiu fazer foi desistir, culpe-se o espírito inconformado herdado da linhagem familiar ou a predisposição genética de se ser mulher. Mas é uma mulher que sente orgulho em ser mulher, mesmo sabendo dos riscos de o ser. Mesmo com a delicadeza a definir o seu ser e a bondade a ocupar o seu coração. Nada lhe tira a bravura. A vida também a muniu de testes de resiliência, aos quais se mostra agradecida. Passou por cidades de Portugal, Reino Unido, Espanha, Brasil, França, Angola e Países Baixos. E hoje é o resultado de todos os sítios por onde passou. Ainda que no país lusitano faça vida, para Myriam não existem moradas fixas, apenas uma causa que a tem vindo a orientar desde sempre: a defesa dos Direitos Humanos. Ela é do mundo, ainda que no seu universo interior viva para a família, para a Muxima Bio e para a contínua descoberta do que é ser mulher.
Perante uma guerra civil, a sua família decide mudar-se de Angola para Portugal. A vida teria seguido um rumo diferente se tivesse nascido em terras angolanas?
Certamente. Nós somos a soma das nossas vivências, e o facto de ter vivido em Portugal deu-me uma perspetiva totalmente diferente daquela que teria tido se tivesse nascido na terra dos meus pais e avós. Quer queira, quer não, o facto de ser uma mulher negra nascida em Portugal, que é um país onde a maioria das pessoas não se parece necessariamente comigo, fez com que eu fosse constantemente putrificada. Aprendi muito nova que era diferente e que a minha diferença levava a que não fosse aceite em determinados sítios.

Tenta cultivar as raízes angolanas?
Sim. Eu cultivo-me lendo e, ao longo do meu crescimento, os meus pais foram partilhando histórias. Também fui viajando para Angola, pelo que não era um lugar desconhecido; aliás, tornou-se um país familiar. Mas a múltipla pertença não deve anular a identidade de ninguém. O meu padrinho de teatro, o Augusto, dizia: «Cadê a portuguesa angolana que vive em Londres e quer ser brasileira?». Eu sou o somatório de todas as experiências que tive. E sou de cada lugar onde vivi, independentemente de ter um afeto especial por Portugal. Sou portuguesa porque nasci em Portugal, tenho toda uma história aqui, mas depois há uma série de outros capítulos que foram vividos nos seis outros países por onde passei. Como diz Taiye Selasi, «don’t ask where I’m from, ask where I’m local».
 
Em tempos, a mãe da Myriam chegou a pertencer à Frente Nacional de Libertação de Angola. Acredita que esse espírito reivindicativo faça parte do seu ADN?
Não foi só a minha mãe que fez parte da Frente Nacional. Antes disso, o meu avô materno fez parte do Processo dos 50, que teve grande importância na libertação nacional de Angola.  

E a Myriam?
A Myriam acorda para a vida muito nova. Tive de me fazer valer muito cedo já que todo o ambiente era hostil. As crianças são educadas para a exclusão, para não aceitarem a diferença, e eu lembro-me de que a minha tendência foi sempre a de ficar com os outcasts, com aqueles que don’t fit in. Eu diria que há um momento em que me torno muito mais acérrima, muito mais envolvida: estava no liceu, penso que no décimo ano, e um colega meu, depois de uma intervenção que fiz durante uma aula, veio convidar-me a fazer parte da associação de estudantes. Penso que esse foi o momento transformador, porque aprendi que tinha algum valor, que aquilo que dizia importava.  

Qual é a pior memória que guarda da adolescência vivida em Portugal?
A pior memória foi a de ter sido confrontada com o racismo visceral dos meus colegas. Lembro-me de uma rapariga em particular me cumprimentar diariamente com a saudação nazi, e recordo-me de ter sido extremamente violento. Tinha 11 ou 12 anos. É muito fácil criar narrativas relativamente aos grupos que não conhecemos, mas são histórias que lá por serem repetidas constantemente não deixam de ser inventadas. Orgulho-me de ser herdeira de uma história africana riquíssima, como de ser herdeira da história lusitana. O que é necessário é que passemos a olhar para as pessoas como pessoas, em vez de olharmos para elas como portadoras de títulos ou de status. Eu gostava só de ser pessoa, mas não, tenho de carregar estas bandeiras que me deram muito trabalho. Ter de dizer que sou mulher negra dá mais trabalho do que me apresentar como pessoa, porque ainda é necessário ter de dizer que sou mulher e que sou negra. 

Aterra em Londres em 1998, com grandes expectativas para estudar teatro. Queria ser atriz?
Entendi relativamente cedo que a minha missão de vida seria ajudar a que o mundo se tornasse um espaço para todos. De alguma forma não me identifico com as narrativas que ainda vejo representadas e acredito que a forma mais imediata de chegar ao imaginário coletivo é através das artes, ou pelo menos é a forma mais diplomática. Daí ter escolhido o teatro como forma de mudar o mundo. A minha ideia era contribuir para a criação de narrativas alternativas e, a partir daí, influenciar o imaginário coletivo. Mas depois apercebi-me de que é muitíssimo complicado e demoraria muito tempo. Estudei teatro, especializei-me em teatro político e fui gradualmente mudando. Atualmente, não trabalho nessa área. 

Esteve também no Brasil e chegou a trabalhar com pessoas portadoras de HIV. O que retirou dessa experiência?
Todo o meu percurso incluiu trabalho de cariz humanitário. Trabalhei com a comunidade de portadores de HIV, mas já em Portugal o tinha feito com toxicodependentes. Aos 14 anos, voluntariei-me. Nessa altura muitos dos meus colegas estavam a dar os primeiros passos no mundo das drogas e eu fiz o caminho oposto, que foi tentar entender o problema e tentar contribuir para a solução. Tudo isto contribuiu para a pessoa que sou hoje. Tornei-me mais empática e eduquei-me melhor, até porque existe muito desconhecimento no que toca a alguns temas.

«Sou de cada lugar onde vivi»
Em 2009, muda-se para Amesterdão e quatro anos depois funda a MUXIMA BIO, uma empresa que desenvolve bioprodutos de alta eficiência. Do que é que surgiu este projeto?
A MUXIMA BIO surgiu da necessidade de aliar todas as dimensões da minha personalidade. É uma empresa de impacto social, que trabalha de forma holística e em diferentes setores, que vão desde a ciência aos media. Na esfera social, criámos Secret Women Meeting on Cocktail. Na vertente dos media, fizemos os programas de televisão Black Access Global e Jantar Indiscreto. Na área científica, somos uma empresa de biotecnologia, que trabalha em parceria com a Universidade de Aveiro e desenvolve a Muxima Caviar System, que é um sistema de produtos cuja linha é específica para cabelos encaracolados. Na esfera educacional, promovemos colóquios, conferências e cimeiras.  

A Myriam é responsável pela criação da primeira marca no mundo de luxo para cabelos africanos. Porquê começar pela discriminação ligada ao cabelo?
Eu sou uma mulher de cabelo afro e sempre fui vítima da construção estereotipada do modelo de beleza. Sim, existe um modelo de beleza instituído e podemos atribuir às redes socias a culpa, mas há muitos anos elas não existiam. A questão começa exatamente na compra e venda de pessoas escravizadas, nas separações que eram feitas consoante as categorizações em função do tom de pele ou do tipo de cabelo. A pessoa podia viver dentro da casa se o seu cabelo fosse liso, por exemplo. Era como se tratasse de uma escala de valor, e o corpo mais barato do mercado era o negro.
Mas voltando à questão, a partir dos 12 ou 13 anos comecei a desfrisar o cabelo. Só parei de o fazer quando fiquei grávida. E é como se naquele momento eu entrasse em introspeção e, de alguma forma, ficasse triste comigo. Passei a minha vida em lutas e conquistas, a lutar por direitos, quando na verdade não me aceitava. Não aceitava quem eu era e cheguei à conclusão de que, de alguma forma, nunca tinha lutado para que a minha identidade fosse plenamente aceite. Então, estando eu grávida, tive de repensar as minhas rotinas de beleza, procurar alternativas que fossem compatíveis com o meu estado. E foi quase impossível encontrar soluções, pelo que decidi criá-las. A Muxima Caviar System é resultado disso, tratando-se de uma linha de produtos de cabelo com voz própria.  

Criou o Secret Women Meeting, em 2016, um espaço de sororidade e partilha entre mulheres dos mais variados setores, esferas sociais e etnias. Fale-nos destes encontros.
Não são nada secretos, o secretismo está só no nome (risos). Os encontros são éticos e mudam de acordo com o dia, portanto, já tivemos diferentes formatos. Nós reunimos mulheres e juntamos algumas que estejam em lugares atuais de poder para que haja partilha e influência positiva. Todas elas são defensoras dos Direitos Humanos e acaba sempre por haver uma troca de histórias inspiradoras. Os problemas que mais se discutem têm que ver com a dificuldade de quebrar o glass sealing. Ainda existe um glass sealing que nos separa, isto porque o mundo continua a ser governado por homens.  

Idealizado e produzido pela Muxima, fez parte do Jantar Indiscreto, um programa televisivo que colocava preconceitos em pratos limpos. Como é que os portugueses receberam o programa? Foram temas que fizeram eco na sociedade portuguesa?
Eu diria que foi muito bem recebido, recebi uma enchente de cartas com sugestões de temas. Foi um programa pioneiro, o primeiro contra preconceitos na televisão portuguesa. Depois desse já surgiram mais, portanto, penso que cumpriu o seu papel. Tenho pena é que, às vezes, os temas não se discutam com a seriedade que merecem, mas essa é a minha visão. 

Sentiu-se sempre livre para exprimir o que pensava?
Eu nunca tiver de ficar em silêncio, digo tudo o que quero. Recordo-me de ter sido discriminada por uma mulher. Estávamos em contexto de trabalho e começámos a falar sobre o programa de televisão e, no decorrer da conversa, diz-me: «Eu tinha uma tia preta e ela andava de Rolls-Royce». Peço-lhe educadamente para não apelidar a tia de preta, mas sim de negra. Recusou-se a fazê-lo, continuando com a sua narrativa. Estamos a falar de uma mulher num cargo de poder... 

A mulher procura igualdade ou equidade?
A mulher procura equidade. Os géneros são diferentes e eu prezo muito essas diferenças. Costumo dizer que se tivesse nascido homem iria querer ser transgénero, porque eu adoro ser mulher. Não me imagino homem. Agora, nós queremos equidade dentro das diferenças que temos, ainda que queiramos ter as mesmas oportunidades num mundo que é, atualmente, desigual. Assusta-me a narrativa da extrema-direita, que tenta aproximar o feminismo de um machismo reverso. O feminismo reclama por equidade. 

Ainda há muitas vozes por ouvir?
Claro que há. Há vozes que nunca foram ouvidas, aliás, o que não faltam são vozes que nunca foram ouvidas. Ainda se ouvem muito poucas, e estas que se ouvem é porque normalmente tem a sorte de receber o microfone nas mãos. Mas eu cheguei aqui com mérito meu, desconhecendo a escolaridade de privilégio. A nossa missão deve ser, por isso, a de criar mais espaço para outras mulheres que têm a mensagem certa.

«Há vozes que nunca foram ouvidas»
Estarão os Direitos Humanos universais em retrocesso na sua aplicação?
Acho que estamos, sim, a viver um período da História muito crítico. Temos perdido alguns direitos a nível global, nomeadamente a lei do aborto que se viu ser revertida em alguns países. Em Portugal, por exemplo, li que os militantes do Chega discutiram e votaram uma proposta para introduzir a pena de morte no país. Estamos a falar de intenções que significariam um atraso civilizacional gravíssimo. Nós já devíamos estar num outro ponto da História. Eu acredito em liberdade de expressão, mas isto são ideias que vão contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos, contra os valores democráticos pelos quais votámos. Falhámos redondamente enquanto sociedade, porque fomos nós que educámos pessoas como o André Ventura. Assusta-me também saber que esta nova geração, a geração Z, de alguma forma, sente fascínio pelo fascismo. 

Acredita que qualquer tipo de ativismo é aceitável?
Não, o crime não é aceitável. Não sou apologista de nenhum tipo de violência, aliás, no que toca à luta, sigo a linha de Martin Luther King. Mas se acreditamos na democracia, temos de acreditar também na justiça. Por exemplo, eu entendo perfeitamente os ativistas do clima, mas é impossível mudar o que quer que seja sem antes resolvermos a questão humana... 

Como tem tempo para conciliar tantas facetas: desde mãe a empreendedora?
Nós, mulheres, somos multi-tasking. Tenho um grande parceiro e seria totalmente impossível fazer um quinto daquilo que eu faço sem ele. Às vezes, na maior parte das vezes, carrego culpa, porque acho que não estou a ser boa filha ou boa mãe. Estamos sempre cheias de culpa e, de facto, é sempre complicado equilibrar os pratos todos na balança.  

O que é que permite que lhe tire a energia, hoje?
A estupidez, o racismo, o preconceito e a falta de sensatez e de empatia. Ultimamente, o que me tem consumido mais, independentemente das demais guerras que existam no mundo, é o conflito em Gaza. Recuso-me a tornar-me insensível face à desgraça humana e ao sofrimento. 

Para si, o que é ser mulher?
Ser mulher é uma construção. E há de ser diferente para mim como é para qualquer outra mulher. Não se nasce mulher, aprende-se a ser uma. 

Ainda se sente muita desigualdade de género?
Só se sente muita desigualdade de género. 

Pelo que luta, hoje, a figura feminina?
Pela equidade e pelo direito a todos os espaços, incluindo o político e financeiro.
T. Redação
F. Nuno Almendra