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Oleksandra Matviichuk

«No momento que deixarmos de lutar, deixaremos de existir»

PMMEDIA Pub.
Vinda de uma família humilde, Oleksandra Matviichuk começou por trabalhar no setor bancário, enquanto finalizava a universidade. O plano era combinar a carreira comercial com a atividade social, dedicando parte do seu tempo ao povo ucraniano. Mas o destino reservou-lhe outros planos. Oleksandra está há mais de 20 anos no campo da proteção dos direitos humanos e, numa entrevista emocionante à V&G Industry, recorda os momentos em que a vida a colocou frente a frente com a sua missão. Hoje, com a nação a viver em ruínas e dor, a advogada revela estar a documentar os crimes de guerra praticados na Ucrânia e, no desenrolar de uma conversa difícil, explica o panorama do conflito Rússia-Ucrânia perante factos e perspetivas. Conheça Oleksandra Matviichuk, a ucraniana que recebeu o Nobel da Paz e preparou o seu discurso de aceitação, dias antes, à luz das velas, em consequência dos bombardeamentos das infraestruturas energéticas na Ucrânia. 
Fale-nos um pouco de si e da sua história de vida.
Venho de uma família pobre, por isso comecei a trabalhar no setor bancário enquanto ainda estava na universidade. O meu plano era combinar uma carreira comercial com atividade social, para o benefício do povo. Desde que o ex-presidente Yanukovych começou a construir uma estrutura vertical centralizada e a suprimir quaisquer atividades cívicas descontroladas, concentrei-me inteiramente na proteção dos direitos humanos. Embora tenha um diploma de Direito, é preciso dominar uma grande variedade de aptidões e competências para ser um defensor dos direitos humanos na Ucrânia. Trabalho no campo da proteção dos direitos humanos há mais de 20 anos. Quando era estudante, organizava vários seminários educativos sobre direitos humanos e autoproteção. Agora, estou a documentar os crimes de guerra, a fim de responsabilizar Putin e outros criminosos de guerra russos.

Quais foram os motivos que a levaram a tornar-se ativista? Houve algum momento específico que o tenha potenciado?
Os dissidentes ucranianos, que em tempos lutaram contra o regime soviético, tiveram um grande impacto no meu percurso de vida. Nessa altura, quando estava na escola, conheci Yevhen Sverstiuk, um filósofo, autor e prisioneiro político. Ele tomou conta de mim e apresentou-me ao grupo de dissidentes. Eram pessoas honestas, que diziam o que pensavam e viviam da maneira que diziam que deviam. Ele e outros dissidentes ensinaram-me que, mesmo que não haja outros meios para lutar contra a injustiça, a própria palavra e a postura pessoal estão sempre connosco. Afinal, não é assim tão pouco. 

Quais são as principais causas que defende?
Lutamos pela liberdade e pelo direito de ter a nossa própria escolha democrática. Estes são os nossos valores. Se considerarmos qualquer das sondagens sociológicas feitas nos últimos anos, podemos ver que os ucranianos sempre apontaram a liberdade como uma prioridade. Também lutamos pelas pessoas. Nunca os abandonaremos para morrer ou sofrer torturas em territórios ocupados. 

É uma advogada especializada em diretos humanos e líder do Centro de Liberdades Civis. Qual é a missão da organização que coordena?
O Centro de Liberdades Civis foi fundado em 2007. O nome diz tudo: defendemos as liberdades civis, tais como a liberdade de expressão, a liberdade de reunião pacífica, a liberdade contra a tortura, e assim por diante. Respondemos sempre de forma flexível aos desafios causados pelas mudanças de circunstâncias. Devemos todos os resultados que conseguimos ao grande número de pessoas comuns que se juntam às nossas iniciativas e campanhas. Sei, de facto, que, se não podemos contar com instrumentos legais eficazes, podemos sempre contar com as pessoas comuns. 

Qual tem sido o papel do Centro de Liberdades Civis perante a onda de refugiados ucranianos?
Tenho comunicado pessoalmente com uma centena de pessoas que sobreviveram ao cativeiro russo. Descreveram a forma como foram espancadas, violadas e torturadas eletricamente nos seus genitais, como as suas unhas foram arrancadas, os joelhos perfurados e foram forçadas a usar o próprio sangue para escrever. Uma senhora descreveu a forma como o seu olho tinha sido arrancado com uma colher. Desde a invasão russa em grande escala, no ano passado, fomos confrontados com uma quantidade sem precedentes de crimes de guerra. Em apenas 10 meses, os nossos esforços conjuntos têm documentado 31.000 episódios de crimes de guerra. 

Foi distinguida com o Nobel da Paz, juntamente com um ativista bielorrusso e uma ONG russa. Como resultado do bombardeamento das infraestruturas energéticas da Ucrânia, Oleksandra viu-se obrigada a escrever o seu discurso de aceitação do Nobel à luz de velas. Nesse momento, quer partilhar o que sentiu?
A invasão russa em grande escala rompeu por completo a noção de «vida normal». A guerra impõe a sua própria medição do tempo, espaço e dor humana. Estamos a viver uma vida de ameaça permanente, porque não há como fugir aos mísseis russos. É uma vida de total incerteza, sendo impossível planear o dia ou mesmo as próximas horas, porque os ataques aéreos, os cortes de eletricidade ou de Internet ocorrem de forma imprevisível. Senti responsabilidade ao escrever o meu discurso de aceitação do Prémio Nobel. Não sei se as palavras têm o poder de parar as guerras, mas desejo que as pessoas, tanto na Ucrânia, como em todos os outros países do mundo, nunca tenham de passar pela mesma experiência que nós.

«Só a justiça pode devolver às pessoas os seus nomes»
Em que medida é que receber o Nobel da Paz lhe trouxe uma nova responsabilidade?
Durante décadas, a voz dos defensores dos direitos humanos da nossa região não foi ouvida. Podemos ter sido ouvidos no Comité dos Direitos Humanos da ONU, mas certamente que o mesmo não aconteceu nos corredores das decisões políticas. O mundo civilizado estava a fechar os olhos à situação, enquanto a Rússia matava jornalistas, prendia ativistas e dispersava manifestações pacíficas no seu próprio país. O mundo civilizado continuou a apertar a mão de Putin, a fazer negócios como de costume e a construir gasodutos. No final, os russos acreditaram que podiam fazer o que quisessem. O Prémio Nobel da Paz faz com que a voz dos defensores dos direitos humanos seja visível. Os direitos humanos e a paz estão indissociavelmente ligados. Um Estado que viola sistematicamente os direitos humanos representa também uma ameaça para o mundo inteiro. 

António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas, afirma que a guerra não tem fim à vista. Partilha da mesma opinião?
Putin só parará quando alguém o parar. Esta é a lógica de ação dos líderes autoritários. Atacam quando sentem fraqueza. Em 2007, Putin anunciou oficialmente os seus planos para forçar a restauração do Império Russo. A Rússia tem vindo a preparar-se para isto durante os últimos anos. Putin julgou mal quando pensou que poderia tomar posse da Ucrânia em três dias. Não esperava que as pessoas que lutassem pela sua liberdade pudessem provar ser mais fortes do que «o segundo exército do mundo». No entanto, a Rússia ainda tem muitos recursos para continuar a guerra. É por isso que a Ucrânia está à procura de ajuda militar de vários países, a fim de receber armamento moderno. 

O apoio internacional prestado à Ucrânia tem-se revelado suficiente?
Coloquemos também a seguinte questão: suficiente ou não suficiente para quê? A Ucrânia, para que se possa defender da agressão russa, precisa de ter recursos proporcionais aos que a Rússia gasta para nos destruir. Segundo o Banco Mundial, em 2021, o PIB russo representava quase 1,8 triliões de dólares, enquanto o PIB ucraniano representava 0,2 triliões de dólares. Esta é a 11.ª economia do mundo. Em 2022, como resultado da agressão russa, a Ucrânia perdeu aproximadamente 40-45% do seu PIB. Ao mesmo tempo, a perda do PIB russo correspondeu oficialmente a 4%, enquanto as estimativas ocidentais indicam uma perda de 8%. A Rússia já adotou o orçamento de guerra de três anos para 2023-2025 e aumentou os impostos. A Rússia espera receber mais 44 mil milhões de dólares apenas do setor do petróleo e gás. Sem dúvida, estes financiamentos adicionais serão investidos exclusivamente na guerra. 

O mundo tem assistido à realidade nua e crua da Ucrânia ou apenas conhece a ponta do icebergue?
É difícil acreditar no que está a acontecer neste momento. As tropas russas estão a destruir propositadamente edifícios residenciais, igrejas, escolas e hospitais. Estão a atacar corredores de evacuação, a coordenar um sistema de campos de filtragem e a organizar deportações forçadas. Estão a raptar, violar, torturar e assassinar pessoas nos territórios ocupados. Esta política é consciente. A Rússia usa os crimes de guerra como método de guerra. Está a tentar romper a resistência das pessoas e a ocupar o país, infligindo imensa dor aos civis. Estamos a documentar esta dor.   

Passaram mais de 300 dias desde que o conflito Rússia-Ucrânia começou. A esperança do povo ucraniano tem esmorecido?
As pessoas na Ucrânia desejam a paz, mais do que qualquer outra pessoa neste mundo. No entanto, a paz não chega quando o país atacado baixa as suas armas. Nesse caso, não se trata de paz, mas sim de ocupação. Nesta guerra, estamos a lutar pela liberdade em todos os seus sentidos. Esta guerra é como um genocídio. Putin afirma abertamente que o povo ucraniano não existe. No momento em que deixarmos de lutar, deixaremos de existir.  

Num cenário de destruição, como se explica uma guerra às crianças? E como se tenta proporcionar uma vida minimamente normal no contexto caótico em que vivem?
Não tenho uma resposta simples a esta pergunta, mas um episódio recentemente vivido por uma amiga pode servir de ilustração. Ela saiu de uma loja e viu uma menina, que estava à porta da entrada. Nesse momento, a sirene de ataque aéreo começou a tocar e a menina começou a chorar. A sua mãe saiu imediatamente a correr da loja e perguntou-lhe porque estava a chorar, visto que a deixara apenas por alguns minutos, para lhe comprar alguns doces. A rapariga respondeu que, quando a sirene de ataque aéreo começou a tocar, tinha ficado com medo de morrer sem que a sua mãe estivesse junto dela.

«A guerra impõe a sua própria medição do tempo, espaço e dor humana»
O que significa «vitória» para o povo ucraniano?
Esta guerra foi desencadeada em fevereiro de 2014, não em fevereiro de 2022. Nessa altura, a Ucrânia teve uma oportunidade para uma rápida transformação democrática após o colapso do regime autoritário. A fim de nos impedir neste caminho, a Rússia ocupou a Crimeia e algumas partes dos oblasts de Donetsk e Luhansk. Putin não tem medo da OTAN, Putin tem medo da ideia de liberdade. Esta não é a guerra de dois Estados, mas a guerra de dois sistemas: o autoritarismo e a democracia. Os ucranianos acreditam que a vitória significa não só a restauração da ordem internacional, como também a libertação da Crimeia e de outros territórios ocupados, bem como a expulsão das tropas russas do nosso país. Os ucranianos acreditam que a vitória significa a conclusão bem-sucedida da transformação democrática e a construção do país, onde os direitos humanos de cada pessoa são protegidos, o governo é responsável, os tribunais são independentes e a polícia não espanca estudantes em manifestações pacíficas.

Aquando do discurso na entrega do Nobel da Paz, Oleksandra apelou à criação de um tribunal internacional que julga os criminosos de guerra. Pode fundamentar esta necessidade?
Uma guerra transforma as pessoas em números. Só a justiça pode devolver às pessoas os seus nomes. É por isso que devemos assegurar justiça para todas as vítimas de crimes internacionais. Independentemente da sua identidade, do seu estatuto social, do tipo de crime ou crueldade de que foram vítimas, bem como do interesse dos meios de comunicação social ou da sociedade. Porque a vida de cada pessoa tem importância. Enfrentámos o problema da lacuna na responsabilização. O sistema jurídico ucraniano está sobrecarregado com a quantidade de processos de crimes de guerra. O Tribunal Penal Internacional restringe as suas investigações a vários casos selecionados e não tem jurisdição sobre o crime de agressão em termos da agressão russa contra a Ucrânia. Consequentemente, devemos criar um tribunal internacional para levar Putin, Lukashenko e outros criminosos de guerra russos perante a justiça.

Considera que o ódio e o ressentimento, nutridos pelo país atacante, se irão propagar pelas próximas gerações?
Infelizmente, esta não é a guerra de Putin, esta é a guerra do povo russo. A maioria dos russos apoia a tomada de territórios estrangeiros. Putin governa a Rússia não só através da repressão e censura, mas também através da execução de um contrato social entre as elites do Kremlin e o povo russo. Este contrato social baseia-se na grandeza russa. A maioria ainda coloca a sua grandeza no restaurado, embora forçadamente, Império Russo. Isto significa que só a vitória da Ucrânia pode dar à Rússia uma oportunidade para o seu próprio futuro democrático. Só assim os russos serão obrigados a reconsiderar a sua cultura imperial e a ideia de que, no século XXI, se constitui como uma barbárie ocupar territórios de países estrangeiros e matar pessoas. 

«Jamais deixaremos que a História e a tragédia se repitam», foi o que afirmou à comunicação social. Como se pode garantir que tal não aconteça?
A paz duradoura, que liberta o medo e oferece perspetivas a longo prazo, é impossível sem justiça. Durante todas estas décadas, os militares russos têm cometido crimes internacionais na Chechénia, Moldávia, Geórgia, Mali, Líbia e Síria, e gozam de impunidade. Temos de quebrar este ciclo de impunidade. Para bem dos ucranianos e de outras pessoas, que já foram afetadas pelas ações da Rússia, como pelo bem do povo, que pode tornar-se o próximo alvo da agressão russa.

Que mensagem deixa aos países que travam outras lutas pelos quatro cantos do mundo?
Reconheço que muitas pessoas também lutam diariamente pela liberdade e dignidade humana em vários países do mundo. Por vezes, pode parecer que esta luta não faz sentido, porque o poder adversário é demasiado poderoso. No entanto, toda a História da Humanidade prova, de forma convincente, que não se deve desistir. É importante continuar a luta justa. Mais cedo ou mais tarde, conseguir-se-ão resultados. Estou convencida de que nos devemos apoiar uns aos outros nesta luta pela liberdade. Há muitas coisas que não se limitam a quaisquer fronteiras estatais. A solidariedade humana é uma das mais importantes. Vivemos num mundo muito interligado. Só a expansão da liberdade pode torná-lo seguro.   
T. Joana Rebelo
F. Direitos Reservados