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Carla Castro

«Cresci na rádio, foi lá que me tornei mulher»

PMMEDIA Pub.
Divide a maior parte do seu tempo entre o mundo da rádio e o académico. Mas, no restante, procura sempre dar atenção às filhas, com quem gosta de ver filmes e fazer jogos e a quem tenta incutir o gosto musical dos anos 60 aos anos 2000, de forma a infundir-lhes cultura. Carla Castro é locutora de rádio há mais de 35 anos. Sonhou ser engenheira petrolífera, mas foi na Rádio Nacional de Angola (RNA) que, aos 15 anos, deu os primeiros passos e não mais parou. Gosta de dançar, socializar e viajar. Em entrevista à V&G, falou do desafio que foi tornar-se locutora, do papel que hoje as mulheres assumem em cargos de direção no universo da rádio, que ainda são poucos, e fez referência à comunicação social no mundo, que, segundo Carla, «deixou de ser inocente, deixou de ser humana, não obedecendo aos critérios da imparcialidade e de informar com verdade». 
Pode partilhar um pouco do seu percurso académico e do profissional. 
Era estudante de Química, imbuída no sonho de ser engenheira de petróleos, mas fui ‘levada’ para a rádio por ter participado num teste de locução. Era bastante jovem. Tinha 15 anos. A Rádio Nacional de Angola (RNA) estava a precisar de locutores jovens para trabalhar em regime de part-time. Foi exatamente assim que comecei, sem nunca ter feito programas infantis, nem juvenis. A minha compleição física enganava um pouco, e, na altura, levou a direção a pensar que eu já era adulta. Quando a minha idade foi descoberta, a única solução foi a minha mãe assinar um documento em que me autorizava a trabalhar. Depois, aos 16 anos, recebi o convite para apresentar um programa sobre o mundo do cinema e essa foi a minha primeira experiência de TV. Fiquei na Televisão Pública de Angola (TPA), a única estação de TV de Angola, até 1994. A partir daí o sonho de engenheira de petróleos foi morrendo e o de jornalista ou radialista entrando velozmente. Resultado: já não queria seguir a universidade na área sonhada, mas em Comunicação Social. Estávamos nos anos 80 e, nessa década e na seguinte, não havia essa opção, nenhuma Faculdade de Jornalismo ou Ciências da Comunicação no país. Enquanto isso, fui fazendo formações e capacitações técnicas, fui crescendo profissionalmente na esperança de conseguir uma bolsa de estudos para Inglaterra ou Brasil, países que me interessavam para a continuidade dos meus estudos. Em meados de 96, decido deixar a Comunicação, uma tentativa de divórcio por desilusões. Trabalhei alguns anos na Embaixada da África do Sul, em Luanda, mas acabei por ser convidada para fazer parte do grupo de profissionais que tinham a missão de reabrir a Rádio Ecclésia, da Emissora Católica de Angola, e assim voltei a fazer rádio. Mais tarde, deixei novamente a rádio, pois mudei-me para Johannesburg, África do Sul. Regressei em 2008. Nesse ano, ingresso na RNA de novo, onde estou até hoje, e sou convidada a fazer parte da primeira televisão privada de Angola, a TV Zimbo, desde o seu arranque, como pivot do principal jornal de notícias da estação, onde fiquei por uns anos. Era uma carga intensa de trabalho, rádio e televisão, numa altura em que tinha chegado o momento de ser mãe. Passados uns anos, fiquei somente na rádio. Na RNA ocupei cargos como subdiretora do Canal A, diretora de Acompanhamento e Análise de quatro canais do grupo e, até ao início deste ano, como diretora de Programas da RNA. 

Quando iniciou a sua atividade profissional, quão desafiante foi tornar-se locutora de rádio, num país como Angola? 
Estávamos em 1984, num país com poucos anos de independência e num regime socialista; não havia empresas privadas; o sistema de educação e de saúde era público; o Estado absorvia toda a força de trabalho, para além de embaixadas e petrolíferas, e o país continuava em guerra. Era uma altura de massificação de técnicos para dar arranque a uma pequena indústria. Eram poucos os jovens que efetivamente já trabalhavam, a palavra de Ordem era «Estudar é um Dever Revolucionário». E essa era a missão primordial dos jovens, a sua formação. Aos 15 anos, comecei a fazer rádio, na única rádio que existia em Luanda e que transmitia para todo o país, sendo que a televisão começava a sua emissão ao fim do dia e fechava antes da meia-noite e não existia TV por satélite nas casas dos angolanos, a não ser em postos estratégicos, e a internet nem fazia parte do nosso vocabulário. Nessa altura, ser da RNA era um grande privilégio e desafio, eram grandes os nomes que lá estavam. Angola inteira conhecia-os e admirava-os, seguia o seu trabalho. Era a forma de os angolanos se informarem, mas também de se entreterem. Tornei-me famosa muito cedo e tendo igualmente a televisão como uma alavanca. Participei em projetos maravilhosos e tive o privilégio de aprender com «feras» nos primeiros anos. Além disso, o salário embora sendo pouco, para todos nós, caía religiosamente. Não era o foco central, mas passou a ser uma década depois, sendo a razão da minha saída pelas exigências da própria idade, os novos tempos em Angola, já multipartidária e com economia de mercado a engatinhar.  

«A rádio sempre esteve na vanguarda da luta e conquista dos direitos da mulher»
Quando surgiu a vontade de ser locutora?
Falei do sonho de ser engenheira de petróleos, esse era realmente o sonho, fui ‘corrompida’ (risos), mas sempre tive o hábito de ler em voz alta, e de fingir ser da TV, naquele exercício de baixa e levanta a cabeça – não havia teleponto (só para situar o contexto). 

Aos jovens que querem seguir esta mesma profissão que conselhos lhes daria?
 É um mundo que tem atraído muito os jovens, mas, infelizmente, muitos deles vêm mal preparados, mesmo em matéria de língua, linguística e cultura geral, sem gosto ou interesse por leitura. Tenho dado muitas formações em técnicas de locução, reportagem, entrevista e realização e produção de programas e insisto com eles para investirem em si de forma a colmatarem as suas lacunas. Por outro lado, temos bastante criatividade. Há que ser aproveitada e bem direcionada.

Entre as 09h00 e as 12h00, os ouvintes ouvem-na todos os dias. Contam com os seus vastos anos de experiência. Cada emissão continua a ser desafiante ou já é algo tão natural que nada a amedronta?
No dia a dia já não. Mas há dias de frio na barriga. Quando são novos projetos a ir ao ar, pela primeira vez, é um jogo de adrenalina e de responsabilidade de não errar, de não fazer feio e de conquistar o outro lado, a audiência de uma população extensamente jovem. É uma constante reinvenção e atualização.  

Está na RNA há quantos anos? De que forma acha que as rádios evoluíram nestas últimas décadas?
Vou fazer 38 anos de rádio, no dia 15 de março, altura em que oficialmente fui considerada funcionária da RNA. As rádios evoluíram sem margem de dúvidas, na parte técnica e tecnológica. É incomparável. Mas em termos de rigorosidade, tanto na escrita (em crónicas e criação de diálogos, por exemplo), como na palavra falada (dicção, vocabulário…), com as suas raras exceções, regrediu.

Trabalhar em rádio trouxe-lhe só coisas boas? 
Cresci na rádio, foi lá que me tornei mulher. Foi o meu primeiro e quase único emprego. Foram várias as fases pelas quais passei, e ainda passo... Na mudança de tempos e convívio com várias gerações, as coisas não hão de ser sempre boas. É com humanos que trabalhamos.

Hoje, o papel que as mulheres assumem no mundo da rádio é visto com outros olhos?
  É muito interessante que a rádio sempre tenha estado na vanguarda da luta e conquista dos direitos da mulher, a começar, inclusive, por um programa nos anos 80, dirigido essencialmente à mulher. Quando cheguei à RNA, era uma mulher que comandava tudo o que tinha que ver com a programação – a eterna Diretora de Programas Maria Luísa Fançony. Eterna porque, até hoje, mesmo sem o ser de muitos, ainda a chamamos assim: Diretora. Nos tempos de hoje, as mulheres ocupam alguns cargos, mas se olharmos para a quantidade de rádios em Angola, são poucas as mulheres à cabeça. Na própria administração da RNA, nunca houve uma PCA e, muitas vezes, as poucas que ocupam os cargos de administração vêm de fora, são extra RNA.  

«A comunicação social no mundo (onde Angola se insere) precisa de uma remodelação»  

Qual a sua opinião sobre a comunicação social, no país e no mundo?
A comunicação social no mundo (onde Angola se insere) precisa de uma remodelação, deixou de ser inocente, deixou de ser humana, não obedecendo aos critérios de imparcialidade e de informar com verdade. Enquanto grupos de poder, tanto a nível político como financeiro, a comandarem, ela servirá apenas interesses desses grupos. Isso tem levado a que profissionais e os media caiam em descrédito e as pessoas se informem nas redes socias, estando sujeitas a serem igualmente levadas em erro pelas Fake News. Mas é aqui, às redes sociais, aonde também os media tradicionais devem recorrer, pois o feedback do seu público chega em forma de opinião. O ouvinte, o leitor, o telespectador quer ser partícipe desse tema abordado.

O que representa para si ser locutora de rádio?
Rádio é um mundo de emoção para quem a faz e para quem a ouve. É o locutor que é o elo entre o ouvinte e aquela caixa, hoje, ainda em forma de rádio, mas também de telefone, de tablet, de televisão, de computador... Cabe ao locutor saber passar todo um trabalho feito com entrega total de todos. Um bom locutor pode salvar programas de uma má realização, um mau locutor pode estragar bons programas, pelo que este último não deverá sequer ir para o ar. 

Quais devem ser as principais características que um locutor deve ter?
Sempre aprendi que deveríamos ser, de facto, um cidadão-modelo, de conduta exemplar, sem escândalos e polémicas à volta da nossa vida e presença no espaço público. A nossa rádio ainda é muito de caracter formativo e cabe-nos passar essa mensagem, esse conhecimento, esse conselho. No lado técnico, um rico vocabulário, excelente capacidade de leitura e interpretação, discurso eloquente, boa dicção, boa projeção de voz, uma boa capacidade de memorização, cultura geral vasta, atenção aos fenómenos políticos, económicos, sociais do seu país e do mundo. E, se a tudo isso se aliar uma voz magnífica, não tem como não ser «querido» do público. É importante transmitir simpatia na sua voz, o ouvinte tem de sentir empatia por aquela voz que ouve.

Celebramos o 13.º aniversário da revista Villas&Golfe, em Angola. O que representaram para si estes últimos 13 anos, na sua vida e no país?
Villas&Golfe é revista necessária para um público-alvo como é o seu, uma classe exigente, de requinte e glamour, de cultura, nas suas variadas vertentes. E tem tido a capacidade de satisfazer as expectativas de quem olha para a capa e começa a folheá-la, seja na sua forma convencional ou ainda num click.  
Maria Cruz
T. Maria Cruz
F. Nuno Almendra